Um é brasileiro.
Fundador, ao lado do irmão e de uma ruivinha espevitada, de uma banda que revolucionou a música popular de sua época, misturando o, ainda jovem, rock’n’roll a elementos típicos de nossa cultura e, inaugurando em grande estilo a psicodelia tupiniquim. Dono de idéias originais, drogou-se tanto quanto quis (e quis muito). Se atirou do terceiro andar de um hospital psiquiátrico enquanto tentava escapar e, como conseqüência, fraturou o crânio, perdeu massa encefálica e ganhou seqüelas que o acompanhariam a partir daí. Passou a viver em retiro, pintando quadros e gravando de forma bissexta. O que ainda faz até hoje. É considerado um gênio da música de seu tempo.
O outro é inglês.
Fundador de uma das maiores bandas de rock do mundo, que sobreviveu a décadas de mudanças, apresentou ao mundo o chamado rock psicodélico. Drogou-se tanto quanto (ou um pouco mais do que) possível o que, associado a um perfil esquizofrênico, o levou a trancar-se, de forma irreversível, dentro de si mesmo. Gravou algum material após ser expulso da banda que ajudou a formar e da qual era, até então, principal compositor. Ao decidir abandonar completamente a música, passou suas décadas finais morando no sótão da casa materna e pintando. Permaneceu em ostracismo auto-infligido até sua morte, devido a um câncer pancreático, aos 60 anos. Também foi, e ainda é, considerado um gênio musical.
Se é que alguém ainda não notou, estamos falando de Arnaldo Dias Baptista e Roger “Syd” Barrett, fundadores, respectivamente, das bandas Os Mutantes e Pink Floyd, e donos de trajetórias assustadoramente similares.
Por conta do recente lançamento do documentário “Loki”, sobre a carreira de Baptista (ao qual ainda não assisti, mas pretendo), que coincidiu aproximadamente com o término de minha leitura da biografia de Barrett “Crazy Diamond”, uma antiga idéia voltou a martelar em minha cabeça.
O paralelo entre genialidade e loucura.
Loucura, entendo e concordo, é um conceito relativo e extremamente frágil. Se jogar de uma ponte amarrado pelos pés, ou mesmo subir em um veículo muito mais pesado que o ar para voar, pode, dependendo de quem analisa, ser considerado loucura. O conceito de genialidade, embora um pouquinho menos plástico que o de loucura, também não deixa de ser bastante subjetivo podendo se estender, por exemplo, até a pessoas que jogam aleatoriamente tintas em uma tela.
Mas porque todo louco ou, sendo politicamente correto, ser desprovido de razão de acordo com os preceitos aceitos socialmente (ou S.D.D.R.D.A.C.O.P.A.S), parece ganhar o epíteto de gênio com mais facilidade que o resto.
Tenho uma certa dificuldade em aceitar isso.
Admiro muito os dois artistas citados, e concordo que ambos tiveram importantes papéis na música popular de seu tempo. Sempre admirei os Mutantes e quanto ao Floyd, por muito tempo na minha adolescência, minha preferência, inclusive, recaia sobre a fase Barrett. Tenho todos os discos de ambas as bandas, mas enxergo a coisa de outra forma: acho que são simplesmente pessoas com boas idéias musicais, que acabaram sendo mais valorizados devido à fama de loucos. Revolucionários, talvez, em seu contexto histórico e local, mas minha implicância reside no fato de qualquer coisa produzida por eles, automaticamente, ser taxada como genial. Se eu não estiver conseguindo passar corretamente a idéia, acho que essa tirinha dos Skrotinhos, do Angeli, retrata bem o que quero expressar:
Qualquer um que analisar friamente a carreira solo de nossos protagonistas vai enxergar que uma parte significativa é formada por idéias nem ao menos minimamente aproveitáveis, e que se fossem cometidas por qualquer outro de nós, meros mortais, seriam motivo de chacota. Para uma idéia melhor do que estou querendo dizer, escutem o último disco solo de Baptista, “Let it Bed”, que re-escuto enquanto escrevo esse texto, como que para dar uma última chance. Mas não... Arnaldo que me perdoe, mas não dá. A recepção efusiva da crítica à seu lançamento só aumenta o contraste quando notamos quão fraco é o material.
Tenho uma história pessoal que reflete bem essa questão do subjetivimo artístico. Como já torturei muitos amigos próximos com esse falatório, se você é um deles pare de ler por aqui.
Há alguns tempo visitei o museu de arte moderna de Paris e, embora tenha visto coisas muito legais, fiquei um pouco revoltado com outras que, nem sob tortura, admitiria como arte. Então, após algum tempo tirei uma foto admirando o alarme de incêndio do corredor como se fosse uma obra de arte.
Nesse momento uma mulher que trabalhava no museu, chegou soltando fogo pelas ventas, e me proibindo de tirar a foto. Sendo pego de surpresa e como se tratava de um equipamento de segurança, achei que houvesse regras quanto a isso e, simpaticamente, argumentei que poderia apagar a foto.Mas ela continuou me perguntando sobre a foto e aí eu vi que ela tinha entendido perfeitamente minha intenção e tinha ficado ofendida com ela. Quando enxerguei isso encerrei a discussão, dizendo secamente que tirei a foto porque quis, e ela saiu pisando forte.
A prova do crime
Agora vejamos: euzinho aqui um mero mortal tento me expressar de uma forma, diga-se, mais inteligente do que boa parte das obras daquele museu, e sou veementemente recriminado. Se eu fosse um "artista", com roupa de artista, cara de artista, crachazinho de artista e com algum crítico respeitado me chamando de artista (e, talvez, com uma boininha artística na cabeça), poderia expor aquela foto naquele mesmo museu, chamá-la de "Revolta - uma crítica à banalização da arte" e a mesma mulher furiosa, estaria me aplaudindo e cobrindo de elogios. Afinal arte não é sobre ousadia e causar uma reação no público?
Não sou defensor incontestável da arte como conceito puramente clássico, e sou capaz de admirar até um quadro pintado pelo balançar da cauda de um jumento. Se meu cérebro entender aquilo como uma combinação legal de cores e formas, para mim basta.
Só não me venham querer explicar as motivações do jumento, nem taxarem a pobre montaria de genial.
Fazer uma coisa diferente e/ou esquisita não faz dela, necessariamente, uma obra de arte. Mas acontece que quando alguém, teoricamente habilitado a fazê-lo, baixa o decreto de que aquilo ali é uma obra de arte, todas as ovelhas vão atrás aplaudindo.
DuChamp que me perdoe, mas expor um mictório de banheiro masculino em um pedestal, e nomear a isso de ready-made art , por si só não o faz arte.
Poder até ser que todo gênio seja, de alguma forma, louco, mas considerar o contrário essencialmente verdadeiro é, como se diz mesmo?
Ah, lembrei! Loucura.
* O título do post vem da faixa de abertura de Loki?, primeiro álbum-solo de Arnaldo Baptista, lançado em 1974, e que, vamos ser justos, é bem melhor do que o "Let it bed".